Um dos mais reconhecidos talentos da nova safra de artistas visuais pernambucanos, Kilian Glasner sempre soube que seu trabalho deveria causar não apenas impacto estético, mas também trazer uma narrativa, uma história, um registro de seu entorno. Essa percepção nunca foi tão forte quanto em 24 de maio passado, quando Kilian viu a casa que seu pai havia projeto e construído, no Pontal de Itamaracá, no litoral norte de Pernambuco, queimar até o chão – literalmente.

Uma versão robusta da cabana de Robson Crusoé, com muita madeira e piaçava, a casa pegou fogo por conta de uma queimada no terreno vizinho. Kilian estava em Recife, onde costuma ficar alguns dias na semana, foi avisado por vizinhos, e quando chegou não havia mais quase nada de pé.

Ficou destroçado, perdeu a casa que amava (nas horas vagas é indômito kitesurfista, e Itamaracá é dos melhores lugares para a prática do esporte no estado), bens pessoais, tesouros de infância e cinco obras que fariam parte de uma planejada exposição no tradicional CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil) de São Paulo. O tema seria o espaço, tema recorrente de seus quadros mais recentes, que confundem a vista e mais parecem fotos, resultado obtido pelo uso de pigmentos puros sobre papel.

Longe de ficar paralisado diante da tragédia, no dia seguinte ao incêndio, ao relatar a amigos o ocorrido, já tinha claro como iria se recuperar: “Vou fazer disso uma bela história de arte”. Promessa feita, promessa cumprida, a mostra “Macrocosmos, Microcosmos ou, a Cosmogonia dos Incêndios” estreou cinco meses depois do desastre, no mesmo CCBB que abrigaria a exposição sobre o espaço.

“Sempre olhei pra cima ao me inspirar. O cosmo e as constelações foram tema recorrente das minhas séries mais recentes. Mas tenho certeza que fui convocado pelo fogo a fazer arte”, conta Kilian. “O fogo limpa tudo, é uma regeneração. Foi muito emblemático esse incêndio ter acontecido justo no momento como o que estamos vivendo”.

Ao todo, são 30 obras expostas no CCBB com a temática do fogo e do desastre, 25 delas produzidas no furor criativo pós-incêndio. Já no início da mostra, o visitante sente o impacto: um vídeo mostra ruínas da casa ainda com o barulho da madeira queimada estalando. Pelo chão, destroços chamuscados de uma vida inteira: uma cabeça de bronze que havia sido feita pelo pai (cirurgião plástico que também constrói e esculpe), soldadinhos de chumbo, pedaços de carvão por todos os lados.

“Quando entrei na casa, com alguns pedaços de madeira ainda em brasa, senti uma vontade doida de criar. O céu estava muito estrelado, peguei um pedaço de carvão e comecei a desenhar ali mesmo. Era como se estivesse recompondo o que perdi. O desastre deu novo rumo à minha vida.”

Kilian nasceu em 1977 no Recife (o nome é uma homenagem aos antepassados irlandeses) e começou a pintar ainda criança. Ganhou seu primeiro prêmio aos 21 anos, no Salão de Artes Visuais de Pernambuco. Aos 22, se mudou para Paris onde se formou pela École des Beaux Arts. Voltou ao Brasil em 2007, depois de ter exposto em Paris, Londres, Itália, Bélgica e Holanda.

A história de Kilian com fogo não é exatamente inédita. Como aponta o curador da mostra no CCBB, Paulo Kassab Junior, essa relação aparece pela primeira vez em 2010, com a instalação “O Brilhante Futuro da Cana-de-Açúcar”, na Fundação Calouste Gulbenkian (Lisboa). Na ocasião, Kilian preencheu os muros do estacionamento da instituição com desenhos que emulavam uma enorme plantação de cana – ao direcionarem os faróis de seus carros para a obra, os visitantes faziam com que o canavial parecesse estar ardendo em chamas.

Quatro anos mais tarde, voltou ao tema de maneira ainda mais explícita na série “Anatomia do Fogo”. Um barco petroleiro, as janelas de uma casa, uma bandeira e um hotel ardem em chamas, e o encanto sublime do fogo toma conta das cenas, extremamente bem executadas em carvão sobre papel.

“Engana-se quem enxerga unicamente o drama, o trabalho insinua uma espécie de remissão do material: o carvão que surge da queima, recria no papel o aquilo que se perdeu no incêndio”, analisa Kassab.

Representado pela Galeria Lume em São Paulo, pela Garrido Galeria em Recife e pela Paulo Darzé em Salvador, Kilian continua olhando para o cosmos como inspiração para suas telas de extremo realismo. Mas também olha para os incêndios e para a ambiguidade desta força destrutiva que, paradoxalmente, regenera e cria obras que têm efeito de um verdadeiro big bang artístico.

No Instagram: @Kilian_Glasner

Centro Cultural Banco do Brasil São Paulo: R. Álvares Penteado, 112 – Centro Histórico de São Paulo | SP

“Macrocosmos, Microcosmos ou, a Cosmogonia dos Incêndios” em cartaz até 22/11.